A Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abej) e a Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), em conjunto com a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), encaminharam carta ao senador Sérgio Petecão, presidente da Comissão Mista da Medida Provisória nº 905/2019, na qual alertam para os “graves problemas que a MP gerará para a sociedade ao flexibilizar o acesso à profissão de jornalista”.
O documento não apenas pede ao Congresso que rejeite a MP 905, mas também que aprove o Projeto de Emenda à Constituição nº 206/16, que torna obrigatório o diploma em Jornalismo para exercício da profissão e cria o Conselho Federal de Jornalismo.
“Desregulamentar o acesso à atividade enfraquece o ensino e a pesquisa em Jornalismo, comprometendo a qualidade do próprio Jornalismo como prática social e atividade profissional”, afirma a carta, datada de 13 de dezembro e que pretende contribuir para a análise da Comissão Parlamentar Mista fará da MP 905.
Os professores e pesquisadores de Jornalismo afirmam que sem o mínimo controle que o registro confere à profissão, não há condições para diferenciar quem trabalha efetivamente na produção de notícias daqueles que não se valem dos preceitos éticos, e não se pode exigir responsabilidades ou compromissos com a produção noticiosa qualificada.
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“Estaremos ampliando o abismo entre aqueles que estão informados dos que não estão e reforçaremos a produção das chamadas fake news, de meias verdades, de desinformação interessada, colocando em risco reputações e vidas”, explica o documento. “Sem o registro, perderemos um instrumento, ainda que limitado, de poder determinar quem é ou não jornalista profissional.”
O documento prevê um crescimento vertiginoso da produção de desinformação – com o surgimento de mais portais e veículos cujos trabalhadores não passaram pela séria formação profissional para a prática do Jornalismo – caso o cancelamento da exigência de registro profissional para o exercício do Jornalismo não seja revertido.
A serviço das democracias
O documento analisa as implicações, tanto para a sociedade quanto para a democracia, da desregulamentação de diversas profissões que a MP 905 acarreta. “No tocante à atividade jornalística profissional, cabe-nos recuperar algumas informações como forma de demonstrar o que ela significa tanto para o ensino do Jornalismo quanto para o próprio Jornalismo enquanto instituição cara às sociedades democráticas”, afirma.
A carta faz um histórico do jornalismo moderno, cuja origem data de mais de 300 anos, e mostra como ele se tornou um bem público imprescindível à sociedade democrática.
“Certo tipo de informação, aquela de interesse público, foi assumindo lugar de destaque, diferenciando-se de outras, voltadas ao entretenimento e à ficção”, afirma o documento.
“Gradativamente [o Jornalismo] tornou-se instrumento fundamental a serviço do fortalecimento das democracias representativas de natureza liberal, na medida em que passou a fomentar o debate público”, acrescenta.
Os pesquisadores e professores de Jornalismo mostram ainda como o desenvolvimento da atividade “culminou, como em qualquer área, na estruturação de disciplinas e depois de cursos superiores, como forma de oferecer condições (habilidades e competências) para o exercício qualificado do ofício”. O primeiro curso de Jornalismo, “dedicado a capacitar novos jornalistas e a aprimorar aqueles que já trabalhavam na imprensa de massa”, foi criado nos Estados Unidos, no Washington College, estado de Vírginia, há 150 anos.
No Brasil, o primeiro curso entrou em funcionamento em 1947, em São Paulo, por iniciativa do empresário Cásper Líbero, acompanhando o processo de modernização da imprensa nacional. Logo, outros cursos foram abertos: em 1948, na UFRJ, no Rio; em 1958, na UFJF, em Juiz de Fora, Minas gerais; em 1961, na Universidade Católica da Pernambuco.
Segundo dados do Ministério da Educação, atualmente funcionam 70 cursos em universidades públicas e 378 em instituições privadas, oferecendo cerca de 60 mil vagas por ano.
O documento lembra ainda que os cursos de Jornalismo estão presentes em todas as regiões do País, apesar de o diploma não ser mais exigência para o exercício da profissão, por decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2009, fato que contribuiu para a fragilizar a atividade.
“A área possui diretrizes curriculares próprias (DCN), que estabelecem orientações gerais, com objetivo de garantir condições necessárias para o funcionamento dos cursos” ressalta a carta. “Tal circunstância reforça a preocupação com a qualidade da formação em Jornalismo no país, ignorada com a MP 905/2019, quando retira a necessidade de registro profissional para atuar na área.”
E não é só na graduação que o Jornalismo está presente.
“Atualmente, existem no Brasil três cursos de pós-graduação stricto sensu em Jornalismo (mestrados e doutorado) e quatro programas em Comunicação com linhas de pesquisa específicas em Jornalismo, além de dezenas de programas com enfoque no Jornalismo como objeto de estudo”, informa o documento.
“Para se ter ideia da importância da pesquisa em Jornalismo no Brasil, somente entre 2010 e 2015, foram defendidas 1.015 dissertações e 235 teses apresentando o Jornalismo como objeto central de reflexão”, acrescenta. “Estes dados demonstram que o Jornalismo tem recebido atenção de cientistas, tanto pela sua importância como um produto de interesse público, quanto pelos efeitos que ele produz na sociedade.”
Mercado de trabalho
O documento alerta que, sob o argumento de criar empregos para jovens, a MP 905/2019 “conduz a um desregramento da produção jornalística”, pois possibilita que pessoas sem a formação adequada e sem os conhecimentos necessários para o exercício pleno da profissão ocupem o mercado de trabalho. Sem o controle do registro, o Jornalismo se fragiliza ainda mais.
O documento dos professores e pesquisadores chama atenção para o Código de Ética que orienta os jornalistas, assim como acontece em outras profissões.
“Mostra-se fundamental distinguir, como fazem os estudos do campo acadêmico da Sociologia das Profissões, a diferença notória entre ‘emprego’ e ‘profissão’, sendo que o ‘emprego’ está mais vinculado a ‘exercer uma atividade’ enquanto o conceito de ‘profissão’ está absolutamente relacionado a uma atividade profissional que é regulada (no sentido de ser orientada) por um padrão de atitudes de ética e deontologia profissional – o que leva as profissões, mas não particularmente os empregos, a possuírem os códigos de ética, como é o caso da profissão de jornalista no Brasil, que possui o Código de Ética dos Jornalistas Profissionais. Portanto, dentro desse raciocínio, há sólido amparo científico nos estudos do campo da Sociologia das Profissões”, explica o documento.
A extinção do registro profissional dos jornalistas tem impacto sobre toda a profissão em todos os seus aspectos: salários, número de cargos disponíveis, redução da busca de jovens pela formação universitária em Jornalismo, entre outros. Historicamente, ressalta o documento, as profissões têm força social quando combinam dois fatores: a capacidade de criar seus próprios problemas para depois desenvolverem o conhecimento abstrato para solucioná-los e a capacidade de monopolizar o desempenho de uma atividade especializada.
Por tudo isso, o documento afirma que, para avançar no reconhecimento e na qualificação da atividade jornalística, o Congresso deve não apenas rejeitar a MP 905/2019, mas também aprovar o Projeto de Emenda à Constituição nº 206/16, já aprovado pelo Senado, que aguarda votação pela Câmara Federal, que torna obrigatório o diploma em Jornalismo para exercício da profissão e cria o Conselho Federal de Jornalismo.
“Tais medidas contribuiriam substancialmente para qualificar a oferta de notícias, bem como para a fiscalização, por parte dos pares, de eventuais descompassos”, afirma a carta.
O documento lembra ainda que, desde o final da primeira década do século XXI, foi identificado um novo modelo de desordem informacional danoso à democracia, do qual faz parte o fenômeno das fake news. Nesse ambiente o trabalho do jornalista profissional funciona como um antídoto, destaca o texto.
“Compreendemos que tal desordem informacional – na qual reinam a produção de informações com cunho de intenção de enganar as sociedades – tem no Jornalismo profissional um dos seus principais combatentes”, enfatiza a nota. “Também por isso, o registro profissional dos jornalistas deve ser considerado como um escudo contra a avalanche de fake news que tem assolado o estado democrático de direito.”
O documento afirma ainda que no atual cenário midiático de crise, com as empresas de mídia tradicionais perdendo o protagonismo de dizer o que é notícia, tal responsabilidade recai sobre outros atores, muitos deles sem preparo algum para realizar tal tarefa.
“Sem algum tipo de controle, reivindicarão seu lugar entre aqueles que passaram quatro anos e mais de 3.000 horas aprendendo sobre os princípios éticos e deontológicos do Jornalismo, História, Filosofia e Economia, dentre tantas outras áreas, desenvolvendo e aprimorando técnicas de elaboração de conteúdos noticiosos para as mais variadas mídias, aprendendo apurar, checar, selecionar e publicar entre outros conhecimentos tão necessários com o objetivo de entregar a melhor notícia possível. Mas, para isso, o Jornalismo precisa existir!”, afirma o documento.
Os professores e pesquisadores de Jornalismo encerram a carta ressaltando o papel do Poder Legislativo neste momento e propondo que deputados e senadores possuem tomem a iniciativa de pôr em prática as seguintes medidas:
1. Restabelecer o poder da sociedade (Estado) como agente regulador efetivo nesta área, dentre outras maneiras;
2. Definir o registro profissional como instrumento de acesso à profissão, vetando a MP 905/2019;
3. Aprovar o PEC 206/12, já aprovada pelo Senado, que garante a exigência do diploma para o exercício da profissão;
4. Ajudar a estabelecer, em primeiro lugar, a verdade sobre a atividade jornalística;
5. Transmitir para a sociedade de que os poderes da República, sobretudo a Casa do Povo, consideram imprescindível o Jornalismo ético e de qualidade para a democracia brasileira.