Evento promovido pela Rede Lume e UEL FM reuniu familiares com representantes do Gaeco, Defensoria Pública e pesquisadora do juvenicídio; contou com apoio do Sindijor Norte PR
Para quem eu ligo quando o assassino é a polícia? Essa foi a pergunta deixada no ar pela empresária Hayda Melo, durante o debate “Letalidade Policial: um retrato da violência no Paraná”, realizado pela Rede Lume e a Rádio UEL FM, no campus da universidade, na noite da última quarta-feira, dia 15 de março.
Ela é mãe de Willian Júnior, morto numa abordagem policial, aos 18 anos de idade, dia 6 de maio do ano passado, nas proximidades da própria UEL.
Hayda, que representou o movimento Justiça por Almas – Mães em luto na luta, compôs a mesa do debate ao lado da defensora pública Andreza Lima de Menezes, da professora Andréa Pires Rocha, do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL), e do promotor Jorge Fernando Barreto da Costa, que representou o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público.
Mediado pela editora da Rede Lume, Cecília França, o debate discutiu o aumento do número de mortes decorrentes de ações policiais no Paraná e em Londrina.
Mas teve momentos de muita emoção devido aos relatos feito pelos familiares das pessoas mortas. De 2017 a 2022, as forças de segurança mataram 2.196 pessoas no Estado, sendo 226 em Londrina.
“O Estado vem e mata seu filho e você é obrigado a conviver com essa dor. Os dedos do meu filho foram decepados. Ele foi alvejado por 15 tiros, um de metralhadora. Meu filho não saiu de casa para morrer. Não tinha armas, não era bandido, não traficava”, declarou Marilene Ferraz da Silva Santos, mãe de Davi Gregório Ferraz dos Santos, morto pela PM na Vila Recreio em Londrina dia 15 de junho de 2022.
Davi não é o único adolescente vítima da violência policial no Estado. Estudo do Núcleo da Política Criminal e da Execução Penal (Nupep), da Defensoria Pública Estadual, com 302 mortes ocorridas em 2021, apresentado no debate pela defensora Andreza, mostra que, em 25% dos casos, os mortos eram menores de idade.
Reportagem publicada pela Rede Lume em 2022 trouxe outro recorte importante, a partir de dados do Ministério Público: de 2017 a 2021,185 menores de 18 anos morreram em ações das polícias no Paraná.
O estudo do Nupep mostra que os jovens com idade entre 18 e 25 anos representavam quase 28% do total analisado. “Ou seja, mais da metade eram jovens”, pontuou a defensora.
Quanto ao recorte racial dos mortos analisados pelo Nupep, 36% eram declarados como pretos nos laudos do Instituto Médico Legal (IML) e 25% não tinham nenhuma identificação relativa à cor da pele. A defensora aponta outra imprecisão: “Pelo menos três pessoas a gente vê nas imagens dos processos que eram pretas, mas foram identificadas como brancas”.
Foi o caso do filho de Ana Paula, Matheus Henrique, morto em 2016. “Ele era preto e no laudo do IML está que meu filho é branco. É doloroso para uma mãe. Eu não quero esconder a cor do meu filho, a identidade do meu filho, nunca foi minha intenção”, contou ela durante o debate.
A professora Andréa ressaltou que 60% dos jovens vítimas de mortes violentas no Brasil são negros. E citou que a soma de pretos e pardos em 2022, segundo dados do Gaeco, é de 58% dos mortos, sendo que a população com essas características é de apenas 30% no Paraná. “Tem alguma coisa errada aí.”
Ela fez um breve resgate histórico do Brasil, lembrando da perseguição pelos europeus dos povos originários e da escravidão dos africanos. “O racismo perpetua após a escravidão com o trabalho precário deixado para os negros. No Brasil, há quem diga que as pessoas negras têm tendência ao crime.”
Estudiosa da “guerra das drogas como salvo conduto para se matar”, ela lembrou que, apesar da matança, o País não tem pena de morte. “Com passagem pela polícia ou sem passagem não existe pena de morte.”
E ressaltou que é para os “corpos negros que os aparelhos do Estado têm suas miras apontadas”.
A professora também chamou atenção para a idade das pessoas mortas e disse que há um juvenicídio em curso no Brasil. “Um carro roubado vale mais que a vida de três jovens”, declarou.
Debate: alteração de cenário levanta suspeitas
Outro ponto discutido durante o debate é que, segundo a Defensoria, em 53% dos casos estudados referentes ao ano de 2021, houve adulteração do cenário das mortes. Os policiais costumam tirar a arma que supostamente os baleados estavam portando.
Eles alegam que, apesar de caídas, as pessoas ainda apresentavam sinais vitais e, por isso, ainda podiam reagir. “A gente pede a Secretaria de Segurança que haja mais rigor nessas situações e que o Estado regulamente as ações investigativas pós-crime”, disse a defensora.
Boa parte das mães e pais acreditam que seus filhos estavam desarmados quando foram mortos. E que a polícia plantou armas junto aos corpos para simular confrontos.
Recentemente, 19 policiais militares paranaenses foram afastados de suas funções suspeitos de se valerem dessa prática.
Questionado durante o debate pela Rede Lume sobre essas alterações das cenas das mortes e das alegações dos policias para justificar os fatos, o promotor do Gaeco foi categórico. “Nós do Ministério Público batemos bastante em cima disso. Se ocorre um confronto e morte, não se mexe mais no local. Só a Criminalística pode fazer isso.”
A função da PM no caso, segundo ele, é apenas de isolar o local, não deixando ninguém passar até a chegada da Polícia Judiciária.
Investigações são tendenciosas
De acordo com o estudo da Defensoria, das 302 mortes analisadas, 157 foram investigadas simultaneamente pelas polícias Civil e Militar. Em 14 casos, foram abertos somente inquéritos policiais militares (IPMs). Em 123, foram encontrados apenas inquéritos policiais e nos oito casos restantes, não foram localizados dados que permitissem afirmar se foi ou não aberta uma investigação.
De todos os casos analisados somente três acabaram em ações penais.
Em mais da metade (53%) dos casos investigados, os mortos não tinham condenação. Em 38%, sequer tinham passagem pela polícia.
O promotor Jorge Fernando Barreto da Costa alega que, em todos os casos, são abertos IPMs e Inquéritos Policial pela Polícia Civil.
Se o responsável pela morte for um policial militar, automaticamente é aberto o IPM e o inquérito civil, uma vez que os agentes públicos são obrigados a fazer o boletim de ocorrência. “Acontece que o IPM tem prazos céleres e a autoridade policial militar tende sempre a justificar a conduta do policial”, admitiu o promotor.
Segundo ele, o Ministério Público aguarda o inquérito policial, que pode demorar mais, e pode pedir mais diligências se achar necessário. Concluindo que houve legítima defesa, o caso é arquivado.
Do contrário, é feita a denúncia à Justiça e, caso se trate da suspeita de um homicídio doloso (com intenção de matar), é encaminhado ao Tribunal do Júri. “Não podemos generalizar que tudo acaba em IPM.”
A defensora Andreza de Menezes lembrou que o Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana, após massacre ocorrido no Rio de Janeiro nos anos 1990, a criar um órgão investigativo próprio para esses casos. Isso porque, no caso dos IPMs, eles invariavelmente são concluídos com a indicação de que houve legítima defesa por parte do policial.
Controle externo
A representante do Justiça por Almas – Mães em luto na luta disse que as principais reivindicações do movimento são de uma força-tarefa externa que investigue os casos, que os policiais passem a usar câmeras em seus uniformes e também sejam obrigados a realizar exames toxicológicos periodicamente. “Não são só os filhos da gente que usam drogas.”
“Queremos uma força tarefa de fora. O delegado aqui só sabe dizer que nossos filhos são os piores da face da Terra e que os policiais são bonzinhos”, reclamou.
Ela lembrou que Willian Júnior era seu único filho e que não aceita a versão dada pela polícia para a morte do jovem. “Não aceito ouvir dizer que meu filho era bandido.” Willian foi morto junto com o amigo Anderbal Júnior de 21 anos. Eles estavam num carro junto com um terceiro jovem, que, apesar de baleado, sobreviveu e conta uma história diferente sobre o que ocorreu. “Meu filho estava agonizando e os policiais saíram da viatura dizendo: ‘morre logo ladrão, vai logo para a luz’.”
A mãe afirmou que nem seu filho nem Anderbal tinham passagem pela polícia. “Até então, eu achava que a polícia era para nos defender, mas eles estão matando nossos jovens.”
Os três jovens receberam 50 tiros, segundo Hayda. “Não mataram o terceiro porque começaram a chegar populares. O delegado de homicídios fez de tudo para não investigar.”
A mãe conta que, nos boletins de ocorrências, os mortos sempre estão com armas tipo 38. E que não é razoável pensar que essas pessoas teriam coragem de enfrentar batalhões especiais e com armamentos pesados. “Quem vai participar de confronto com policiais armados com fuzis usando arma 38?”, questiona.
Câmeras corporais
Vitor Leandro Gomes, londrinense que compõe a equipe do deputado estadual Renato Freitas (PT) e representou o parlamentar no evento, questionou os debatedores sobre a implementação das câmeras corporais para a Polícia Militar do Estado.
O promotor ressaltou que o Ministério Público, junto com outros órgãos, já levou ao governador paranaense sugestões para controlar o problema com a adoção de meios não letais ou de letalidade reduzida na abordagem dos policiais. Além da utilização das câmaras corporais, sugerem o uso de GPS nas viaturas.
Ele citou a experiência de São Paulo, que foi exitosa em diminuir as ocorrências após a adoção de medidas como o uso de câmeras.
Segundo o representante do Gaeco, houve o compromisso do então Comandante Geral da Polícia no Paraná, coronel Hudson Leôncio Teixeira, hoje secretário da Segurança Pública do Estado, em implantar o mais rapidamente possível as medidas sugeridas.
Mas até agora nada foi feito.
Letalidade: falta preparo para a polícia
Desde 2015, o número de mortes por forças de segurança no Paraná vem crescendo ano a ano. Saiu de 247 casos para 488 em 2022 – ou seja praticamente dobrou.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de mortes pelas forças policiais no Paraná foi de 3,6 em 2021, acima da média nacional de 2,9.
Estados como o Rio Grande do Sul tiveram uma taxa muito menor: 1,4. São Paulo apresentou taxa de 1,2 e Minas Gerais, de 0,5
Já Londrina, conforme cálculo da Rede Lume a partir do números do Gaeco, teve 3,9 mortes a cada 10 mil habitantes no ano passado – um índice bem acima do de Curitiba (2,8), Foz do Iguaçu (2,6), Ponta Grossa (1,1), e Maringá e Cascavel (0,8).
Questionado pela reportagem sobre o porquê de o Paraná e Londrina estarem acima das médias nacional e estadual, respectivamente, o promotor foi cuidadoso em responder. Para ele, isso se deve à “formação do policial militar” e à “experiência que o policial militar tem no dia a dia”.
“Esta é minha percepção. O policial sai pensando que vai arriscar sua vida, sai esperando o pior e acaba reagindo dessa forma.”
A solução, para ele, estaria na mudança dessa mentalidade. Uma melhor instrução do policial militar faria baixar essas estatísticas.
O promotor lembrou que o Gaeco passou a centralizar informações sobre essas mortes decorrentes de confrontos por recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público.
Que as mortes, embora sejam causadas, em sua maioria, por PMs, também incluem ações da Polícia Civil e das guardas municipais.
Programado para durar 2 horas, o debate se prolongou por mais uma hora. A transmissão completa pode ser assistida no Youtube da UEL FM.
A Secretaria de Segurança Pública do Estado do Paraná e o 5º Batalhão de Polícia Militar foram convidados para o evento, mas não mandaram representantes.
O debate contou com apoio do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Norte do Paraná (Sindijor Norte PR) e da Frente Antirracista.
Via Nelson Bortolin em Rede Lume de Jornalistas, com modificações pontuais do Sindijor Norte PR