Comemorado neste dia 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra foi instituído em 2011 pela Lei nº 12.519. Para marcar a data, a Coordenadoria de Comunicação preparou esta reportagem especial, para abordar o Sistema de Cotas na UEL, que completou 15 anos em 2020. O destaque é, principalmente, para as cotas raciais, como forma de indicar as políticas públicas realizadas na Universidade para a inclusão e a igualdade racial.
Sem dúvida, o Sistema de Cotas ajudou a aumentar o acesso de estudantes de escolas públicas e de estudantes negros na Universidade, desde 2004, quando essa política afirmativa foi implantada na gestão da reitora, a professora Lygia Lumina Pupatto. Em 2020, o número de ingressantes pelo Vestibular foi de 3.099, considerando cotistas e não cotistas. Essa comunidade é caracterizada por 2.011 pessoas que se declararam brancas, 652 pessoas pardas, 299 pessoas que se declararam pretas, 134 pessoas amarelas e três pessoas indígenas.
A demanda para implantação das cotas veio do movimento negro londrinense em consonância com as reivindicações em nível nacional. Em Londrina, Vilma Santos de Oliveira, dona Vilma – a Yá Mukumby, falecida em agosto de 2013, foi um dos principais nomes a reivindicar as cotas na UEL e a liderar, pelo movimento negro, o processo que se tornou uma conquista e referência para todo o Brasil.
Nesta matéria, pessoas diretamente envolvidas na política de cotas da UEL, seja como estudantes ou participante de movimentos, relatam suas experiências. Confira depoimentos de estudantes cotistas, entrevista com egresso, a evolução do sistema de cotas da Universidade e as principais datas que marcam a trajetória dessa política afirmativa, conquistada pelo movimento negro.
A descoberta do Sistema de Cotas
Amanda Maria de Oliveira Garboza tem 26 anos e está no 5º ano de Medicina, pelo Sistema de Cotas para estudante negro. Ela nasceu no Conjunto Cafezal IV, na região sul de Londrina. O pai Paulo Aparecido Garboza é metalúrgico e sua mãe Maria de Lourdes de Oliveira faleceu há 15 anos. Antes dela, na família, apenas um tio fez faculdade.
A futura médica conta que, depois do falecimento da mãe, mudou-se para a Vila Brasil, na região central, e criada pelos avós – o vigilante Benedito Garboza e Maria Aparecida de Souza Garboza, responsável pela limpeza do local em que o avô trabalhava. “Meu tio fez UEL, quando ela se transformou em gratuita. Os meus outros tios são trabalhadores, vendedor caminhoneiro, auxiliar de escritório e uma tia é técnica de enfermagem, que se formou agora com 40 anos”.
Cotas como justiça social
“Não tinha muita noção do que significava entrar por cotas na UEL. Achava que não fazia muito relevância. Só fui me dar conta da dimensão do debate e dos conflitos, na graduação. Foi nesse momento que entendi o quão significativo era eu estar no espaço acadêmico vindo da escola pública e, ainda por cima, sendo cotista. Significa justiça social sendo efetivada.”
O depoimento é de Thainara Assis Pereira, que ingressou na UEL pelas cotas sociais, como estudante de escola pública. “Então, quando penso no significado do meu ingresso pelo sistema de cotas eu sinto muito orgulho de ser fruto desse tipo de política pública”.
Thainara Assis Pereira entrou na Universidade em 2015, quando outros 725 estudantes de escolas públicas ingressaram na instituição, no mesmo ano pelas cotas sociais. Ela finalizou a licenciatura em Ciências Sociais em 2019 e está concluindo o bacharelado do mesmo curso. Atualmente, é bolsista do Programa de Apoio à Permanência (PROPE), da Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD), cujo objetivo é “desenvolver mecanismos pedagógicos e de assistência estudantil que respondam às demandas oriundas das alterações do perfil do estudante ingressante, no intuito de manter e aprimorar o nível de qualidade da formação universitária.”
Thainara Pereira afirma que os bolsistas vão às escolas públicas divulgar as ações afirmativas a estudantes do ensino médio. “O contexto escolar é um ambiente sempre muito complexo e cheio de disputa de narrativas. Quando não são os alunos nos questionando sobre a legitimidade do sistema de cotas, são os professores, os pedagogos”, afirma. “Quando acessamos informações e, principalmente, informações sobre a realidade da desigualdade sócio-racial do nosso país, não tem como as pessoas não compreenderem a necessidade das ações afirmativas.”
Críticas – “No primeiro semestre em uma conversa sobre cotas, uma aluna disse ‘tem gente aqui que nem deveria estar no sistema de cotas raciais’. Isso me deixou constrangida porque parecia que queria classificar quem deveria ou não [entrar], quem era ou não era negro. Apesar de ter passado por uma banca que avalia as cotas, ainda tive que ouvir esse tipo de fala dentro de uma sala de graduação de Ciências Sociais.” O desabafo é da estudante Ana Paula Moreira Silva, do curso de Ciências Sociais.
A estudante é uma das 342 pessoas que ingressaram na universidade, em 2018, pelo Sistema de Cotas, na modalidade racial (estudante de escola pública e independente do percurso). Hoje, a universitária de 21 anos, moradora de Jandaia do Sul, está no 3º ano do curso.
“É triste ouvir as críticas da sociedade. Muitos nos colocam até como vagabundos, que não mereciam estar lá, dentre tantas outras coisas. É doloroso e frustrante ouvir esse tipo de comentário, mas ao mesmo tempo dá forças para lutar pelo sistema de cotas e fazer com que todos o conheçam”.
No caminho certo
“A principal vantagem [do sistema de cotas] é a democratização do acesso ao ensino superior. Hoje, as universidades brasileiras, e especialmente a UEL, começam a dar visibilidade à diversidade que representa a nossa sociedade.” A avaliação é da presidente do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (CMPIR) de Londrina, Maria Eugênia Almeida, que integra a Comissão de Homologação das Matrículas, vinculado à Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) da UEL. A presidente do CMPIR atendeu à reportagem da Agência UEL para uma entrevista, por e-mail. Confira:
Qual a avaliação do CMPIR sobre as cotas raciais?
Os resultados alcançados por cotas, de modo geral, têm mostrado que o Movimento Negro Brasileiro apontou para o caminho certo. Em nenhuma das universidades em que o sistema foi implantado, houve qualquer alteração negativa da qualidade de ensino. Nós temos um sistema de ensino que prepara para passar no vestibular. Quando o aluno entra no curso, as dificuldades se equiparam.
Muitos, no sistema da meritocracia têm outras oportunidades de ter acesso a conhecimentos complementares, como o estudo de línguas ou ainda ter dedicação exclusiva aos estudos. Na realidade dos jovens negros e periféricos, alguns precisam ajudar no sustento da família.
Mesmo não encontrando facilidade em sua trajetória, pesquisas têm mostrado desempenho igual ou superior aos alunos do sistema universal. Por essa razão, são necessárias políticas de permanência considerando as dificuldades que marcam as trajetórias desses estudantes e não a capacidade de aprender.
Quais as vantagens das cotas raciais enquanto política afirmativa?
A principal vantagem é a democratização do acesso ao ensino superior. Hoje, as universidades brasileiras, especialmente a UEL, começam a dar visibilidade à diversidade que representa a nossa sociedade. São mudanças que incomodam muito. Ainda encontramos muitos contrários e eles sabem – embora não admitam explicitamente – que nossa sociedade foi estruturada sob signo do racismo e da escravidão. A garantia de oportunidades a negras e negros é a única forma de tirá-los da condição de subalternidade e propiciar vida digna a essa grande parcela da população. Isso é bom para o Brasil e para a sociedade brasileira. É inquestionável o avanço que essa política permitiu.
O sistema de cotas da UEL completou 15 anos, em 2020. O que mudou na sociedade sobre essa política nesse período?
Hoje, temos uma universidade muito mais colorida e diversa. Outra coisa que chama atenção é que boa parte dos estudantes cotistas prossegue seus estudos acadêmicos, para a pós graduação (especialização, mestrado, doutorado). Isso mostra o quanto as oportunidades motivam e transformam a vida das pessoas. A UEL se destaca pelo pioneirismo, estando entre as primeiras universidades a implantar o sistema, enfrentando muita oposição externa. Para a militância negra ser atendida por profissionais negras e negros, encontrá-los em diversos lugares – outrora seletivos – ter a presença negra ali garantida, isso é muito bom. A UEL acreditou, investiu na política de inclusão e, hoje, serve de exemplo pelos resultados concretos de que a política de cotas não prejudicou o desempenho de excelência da universidade.
Data histórica
O dia 23 de julho de 2004 está marcado na história da Universidade Estadual de Londrina e do movimento negro londrinense. Trata-se da data em que o Conselho Universitário apreciou, debateu e aprovou o Sistema de Cotas, uma demanda do movimento negro de Londrina, liderado por Vilma Santos de Oliveira, dona Vilma – a Yá Mukumby.
A aprovação se deu com votos favoráveis de 31 conselheiros, 11 contrários e uma abstenção. Neste álbum de imagens, trechos da ata da votação histórica. Para acessar o documento na íntegra CLIQUE AQUI.
A evolução do Sistema de Cotas da UEL
Aprovado pelo Conselho Universitário, em 23 de julho de 2004, o Sistema de Cotas da UEL vigorou de 2005 a 2011 – período que compreende a primeira fase – com um modelo, cuja reserva de vagas apresentava proporcionalidade. A professora Maria Nilza da Silva, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB), lembra que o número efetivo de vagas para os cotistas estava atrelado ao número de inscritos para o curso pretendido pelo candidato.
A maioria dos estudantes negros concorria mais – durante os sete primeiros anos – aos cursos que eles sabiam que teriam condições de ingressar e de concluir, ou seja, os cursos de graduação menos concorridos. “Enquanto que aqueles cursos mais concorridos, sobretudo os integrais, que previam uma dedicação maior – sem possibilidade de trabalhar, simultaneamente, tiveram demanda menor”, afirma Maria Nilza da Silva. Os cursos mais concorridos foram os que tiverem menos candidatos [cotistas]”, constata a professora.
Essa realidade mudou a partir do vestibular de 2012, quando em 2011 foi realizada a avaliação do sistema. O Conselho Universitário ratificou o sistema e promoveu uma importante mudança, com a implementação de 40% das vagas para todos os cursos. “Foi retirada a condição de proporcionalidade. Então, desde 2011, a UEL efetivamente reserva 40% das suas vagas para estudantes de escolas públicas, sendo metade dessas vagas para estudantes negros.”
Entre 2016 e 2017, iniciou-se uma nova discussão e houve outra mudança significativa, com o estabelecimento de uma reserva de 5% das vagas para estudantes negros independentemente de seu percurso, podendo ter estudado parcial ou integralmente em escola privada, serem imigrantes ou refugiados. Essa mudança vale desde o vestibular de 2018. “O sistema de cotas é para a população negra, uma população negra, vítima de um racismo, que é estrutural no Brasil.”
Linha do tempo
Egressa conta sua experiência como cotista
Formada em 2016, Mariana Valle, que trabalha como produtora administrativa na Vila Triolé Cultural, foi cotista do curso de Relações Públicas. Ela defende o Sistema de Cotas e afirma que, hoje, a universidade tem mais negros em todos os cursos, quando se compara com algumas décadas atrás. Nesta entrevista, ela conta como foi a sua passagem pelo curso, fala sobre as críticas que o sistema recebe e diz que as políticas afirmativas são necessárias.
Como foi ingressar na UEL, no curso de Relações Públicas, pelo sistema de cotas?
Houve algum episódio com professor, colega de turma, estudante de outros cursos em relação ao ingresso pelo sistema de cotas?
As cotas recebem muitas críticas de parte da sociedade. Como foi (ou é) lidar com isso?
Hoje, você é profissional, formou-se em 2016. O que você pensa dessa política afirmativa para ingresso na universidade pública?
“É necessário que brasileiros negros e negras se empenhem na luta por saúde, educação, moradia e trabalho. A comunidade negra espera que esse debate traga a luz necessária a fim de que negros e não-negros busquem caminhos que contenham mecanismos compensatórios de reparação histórica, possibilitando, enfim, uma sociedade justa e igualitária com a qual todos nós brasileiros e brasileiras sonhamos.” (Vilma Santos de Oliveira, 2010)
Por Reinaldo C. Zanardi (via O Perobal – UEL)
Jornalista e doutor em Estudos da Linguagem pela UEL. Foi freelancer da Folha de Londrina e trabalhou na Rádio Tabajara. É professor de jornalismo desde 2000, tendo atuado na UEL e na Unopar. É repórter da Agência UEL de Notícias. Integra a atual diretoria do Sindijor Norte PR (2020/23), com representação no Coletivo de Sindicatos de Londrina.
Demais créditos:
Gráficos: Bia Botelho / Edição de vídeo: João Saturno / Revisão: Mirian Cruz / Supervisão: Sergio Gerelus
Foto/destaque: Orna Wachman via Pixabay