A presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), Maria José Braga, esteve em Fortaleza a convite do Sindicato dos Jornalistas do Ceará (Sindjorce). Ela conversou com profissionais sobre a necessidade de reafirmação da atividade jornalística em meio a avalanche de desinformação em massa nas redes sociais. Confira os pontos de uma entrevista concedida em sua passagem pelo Ceará:
O que é a desinformação em massa, que muitos chamam de fake news?
Maria José Braga – A desinformação não pode ser entendida como a ignorância, no sentido de ignorar fatos e realidades. Mas também a desinformação não pode ser entendida apenas como a disseminação – hoje indiscriminada – de mentiras travestidas de notícias. Essa desinformação é gravíssima porque ela é proposital, ela é intencional, ela não é espontânea. Essa profusão de produção e disseminação de mentiras com intensões prévias é extremamente grave porque ela é hoje um ponto central para a manutenção da etapa do capitalismo que nós estamos vivendo, que é o acirramento do neoliberalismo. É fundamental essa produção de inconsciência coletiva para que esse momento do capitalismo ocorra sem haver de fato revoltas e revoluções. Isso é muito grave.
Mas como se dá essa desinformação?
Maria José Braga – Por afirmações incompletas, por afirmações distorcidas, por afirmações descontextualizadas e por afirmações mentirosas. Isso tudo se completa e age de uma forma que a maioria se sinta informada. Olha que eu não usei o termo informações. Usei o termo afirmações. Para mim, informação precisa, sim, de pressupor dados, fatos e opiniões existentes e não meras invenções.
Onde se dá essa disseminação exacerbada hoje?
Maria José Braga – Nas redes sociais. Não é na internet. Não façamos confusão entre internet e redes sociais. As redes sociais são o espaço da desinformação exacerbada. É ali que circula essa desinformação que citei.
Qual é o objetivo da produção da desinformação?
Maria José Braga – É fazer com que, cada vez mais, cidadãos e cidadãs de todo o mundo – não só no Brasil – tenham posições acríticas. Para essa fase do neoliberalismo, é fundamental não termos cidadãos e cidadãs que atuem criticamente, que exerçam sua cidadania e que, portanto, exijam direitos, exijam compromissos, exijam que o Estado cumpra o seu papel de regulador das relações sociais e não apenas de agente do capital, que é o que os Estados, na maioria dos países do mundo, têm feito hoje, sendo meros agentes da reprodução do capital. E nem é mais do capital produtivo, é do capital financeiro.
Qual é esse método?
Maria José Braga – O método é relativamente simples: produção e difusão de mensagens baseadas em cálculos psicológicos e não em mensagens racionais. As afirmações que são disseminadas não querem raciocínio lógico, contextualizado. Querem despertar emoções. E é isso que têm feito no Brasil e no mundo. O que se diz não importa, basta dizer e provocar com isso uma reação em cadeia, uma reação de massa. É por isso que se pode dizer qualquer mentira e reafirmar essa mentira. Porque o objetivo não é produzir razão, é produzir emoção. Eu poderia citar o mais clássico dessas eleições que foi o tal do kit gay, que virou pauta sem nunca ter existido. A gente não teve um papel do jornalismo e do jornalista para ser eficiente ao ponto de esclarecer a sociedade que aquilo não existia.
Com que se assemelha o método e o objetivo da desinformação pelas redes sociais?
Maria José Braga – Assemelha-se à propaganda fascista. E isso é muito grave. Porque tanto lá no fascismo clássico, que vigorou na Alemanha e na Itália, a gente tem fascismos diversos travestidos e que têm o mesmo objetivo e podem produzir os mesmos efeitos.
E quais são essas características fascistas na desinformação atual?
Maria José Braga – Preocupa-se pouco com questões políticas concretas. Ou seja, a pauta real da política não está nessa disseminação da desinformação. Segue um padrão rigidamente estabelecido de dispositivos definidos previamente. Ou seja: eu vou lançar assertivas e ninguém vai explicar ou justificar essas assertivas, todo mundo só vai reproduzir essas assertivas. Porque que alguém tinha de explicar na década de 1940 que judeu era inferior? Não tinha que explicar! Só tinha que aceitar! Por que agora alguém tem de explicar que a mulher é um ser inferior? Não tem! Basta uma ministra afirmar que a mulher tem de ficar em casa. Não se explica: se reproduz, se reproduz e se reproduz! Reiteração constante. Por que agora todo mundo é comunista? Basta você dizer que o salário mínimo precisa de recomposição: comunista! Basta dizer que precisa ter um sistema de saúde funcionando no Brasil como o SUS funciona: comunista! Qualquer um que divirja da pauta ultraliberal do governo de ultradireita é comunista. E como se isso fosse um gravíssimo defeito. E uma última característica assemelhada: escassez de ideias. O objetivo é despertar a emoção, é conquistar simpatizantes, é provocar a identidade por simpatia. Não é despertar raciocínios lógicos e críticos. Eu não preciso apresentar proposições, só basta repetir os jargões que eu definir previamente e que vão ser repetidos por todos durante o tempo todo. O grave é que o fascismo aconteceu lá atrás e hoje o mesmo método, com os mesmos objetivos, conquista adeptos.
Como o fascismo ainda consegue adeptos, se já sabemos as consequências?
Maria José Braga – São três fatores da adesão ao fascismo que o Adorno citou no início da década de 1960. Ele trata exatamente do porquê da adesão à propaganda fascista, introduzindo Freud num terceiro aspecto. Os outros pensadores tinham tratado dos fatores socioeconômicos e políticos. No primeiro caso: grave crise econômica, perda do poder aquisitivo, falta de perspectiva que, no Brasil, agora, tem a característica de estatística, que são os desalentados – pessoas que estão tão sem perspectivas que nem procuram mais empregos. É uma situação econômica que deixa de fato as pessoas sem enxergarem uma possibilidade de retomada da vida produtiva e do seu sustento e da sua família. Isso é fator de se apegar a qualquer alternativa que surja como boia de salvação. Os fatores políticos, que lá na época foram a demonização do comunismo e de povos, principalmente, os judeus – e também os ciganos. Agora a gente tem uma demonização institucionalizada: os partidos políticos, tanto que o presidente se apresentou como não político. E uma demonização dos movimentos sociais: nos sindicatos, isso é claríssimo. A desconstrução dos sindicatos começa na década de 1970 e ganha corpo com a demonização dos sindicatos e sindicalistas. E essa demonização foi muitíssimo bem construída e está na cabeça dos trabalhadores, não só dos jornalistas. A média de sindicalização no Brasil é de 25% de cada categoria. Somos uma categoria de trabalhadores intelectuais, que deveria ter conhecimento dos fatos e saber interpretar a realidade. Esses trabalhadores que se dizem de esquerda, a maioria não milita nem em igreja. Mas, utilizando Freud, Adorno fala dos fatores psicológicos: primeiro, o narcisismo, que é um componente da libido, ou seja do prazer. Rede social fez com que o narcisismo das pessoas fosse elevado a potência “n”. O narcisismo é um componente da libido que preocupou Freud porque essa expressão do ‘ser eu’, que tem um aspecto positivo, de se ver como sujeito, gostar de si mesmo, não pode gerar o individualismo completo: eu sou eu e o resto é o resto, não interessa. Freud, antes da Segunda Guerra Mundial começa a estudar o indivíduo e seus comportamentos individuais e não coletivos.
Qual o aspecto libidinal dessa adesão ao fascismo e às mentiras disseminadas facilmente nas redes sociais?
Maria José Braga – “Em um grupo, o indivíduo é posto sob condições que lhe permitem se livrar das repressões dos instintos inconscientes”. Então, num grupo, há uma identificação de grupo entre os membros e entre, quase sempre, um possível líder que permite esse prazer libidinal da identificação e da realização. Por que nas redes sociais é mais fácil? Freud analisava as massas. Nas redes sociais, nós temos pequenas massas segmentadas. E agem acriticamente, que inclusive são partidárias da violência, e que simplesmente seguem e reproduzem o líder. As redes sociais ainda têm a facilidade do possível anonimato: eu ainda posso falar as maiores atrocidades e, se ninguém do meu grupo quebrar esse pacto, isso vai ficar entre nós. Então, você tem pequenas massas de racistas, pequenas massas de LGBTfóbicos, de machistas… isso de fato precisa ser levado em consideração para analisar como ganha dimensão na chamada era da informação.
O que nós temos que fazer para reverter essa desinformação?
Maria José Braga – Não é uma resposta original, não é minha: se combate a desinformação com a informação verdadeira. Ou seja, com jornalismo! Antes, eu quero lembrar a todos qual é o papel do Jornalismo. Quase todos que leram o livro do Adelmo Genro Filho, “O segredo da pirâmide”, que é uma teoria brasileira e marxista do Jornalismo, sabem que o papel do jornalismo é produzir conhecimento da realidade imediata para possibilitar a construção de juízos e ação cidadã. Ou seja, não é análise histórica, é o conhecimento do que está acontecendo hoje, para o cidadão e cidadã saberem o que é certo e errado, o que é melhor ou pior para ele e para a sociedade e agir como cidadão.
A desinformação venceu o Jornalismo?
Maria José Braga – Não! A História está ocorrendo e nós somos atores dela e queremos atuar nela. Mas nós estamos perdendo as batalhas. Nós – inclusive jornalistas – aceitamos e reproduzimos uma confusão proposital entre jornalismo e entretenimento; entre afirmações e informações jornalísticas. Nós aceitamos uma desvalorização da profissão de jornalista, entendendo que a informação jornalística pode ser produzida por qualquer um – o chamado jornalismo cidadão. Cidadão é fonte! Quem tem obrigação de apurar, verificar e contextualizar é o jornalista e não o cidadão! Nós, não só nos veículos em que trabalhamos mas até individualmente, aceitamos uma disputa equivocada com as redes sociais. Temos que fazer o esclarecimento das diferenças e mostrar o papel de cada um. Fazemos uma valorização exagerara das redes sociais, como se elas fossem o local da informação hoje e não da desinformação. E, a principal causa porque eu acho que estamos perdendo as batalhas até hoje: no Brasil, as empresas de comunicação tradicionais abandonaram o jornalismo. Isso a FENAJ está dizendo há vários anos e acentuou-se com a ascensão de um trabalhador à Presidência da República. Quem afirmou isso foi a Judite Brito, diretora da ANJ que, em entrevista ao jornal Estado de SP, disse claramente assim que o Lula assumiu o governo, que como a oposição estava muito fraca, que ia caber sim à imprensa fazer oposição ao governo. E dou exemplo recente: aprovamos uma reforma trabalhista que, de fato, é uma depenação da CLT, com a retirada de direitos consagrados ao longo de décadas e eu creio que a gente pode contar nos dedos as reportagens críticas que de fato apontavam o que era a reforma trabalhista que foi votada e aprovada no Brasil, nos meios de comunicação brasileiros. A gente realmente não está fazendo o nosso papel de jornalistas que é dar elementos concretos para que o cidadão e a cidadã possam agir e impedir o que está acontecendo.
E o que devemos fazer?
Maria José Braga – A gente precisa não cair no culto às tecnologias. As tecnologias têm nos fins que a humanidade lhes dá. E a humanidade tem que dar fins humanísticos para as tecnologias! As tecnologias não podem simplesmente serem apropriadas pelo capital e estarem a seu serviço. E isso hoje é o WhatsApp! Uma ferramenta que parecia extremamente democrática e livre e que está dominada pelo capital. É preciso humanizar a tecnologia, fugir dos modismos e não ter medo de parecer atrasados.
Qual o papel dos jornalistas?
Maria José Braga – Reafirmar a necessidade do jornalismo. Jornalismo não é diletantismo, não é diversão! Temos que buscar alternativas para a produção jornalística. A gente sabe que o modelo de negócios – e não o Jornalismo – está em crise porque a publicidade não consegue financiar tanta coisa que surgiu. Temos que valorizar a profissão. Jornalismo exige esforço físico e mental, exige investimento em pessoas. Exige grana! Não se faz jornalismo sem dinheiro. Primeiro, porque se gasta para apurar, para fazer um produto de qualidade, e segundo, porque o jornalista tem que sobreviver. O trabalhador vive do seu trabalho, então, nós temos que sermos remunerados dignamente por nosso trabalho. Por fim, temos que agir como intelectual urbano: aquele que participa da vida política da comunidade. Temos que perder o ranço e nos identificarmos como integrantes da classe trabalhadora.
Via FENAJ, com adaptações do Sindijor Norte PR