O gigantesco painel Guernica (1937), do pintor espanhol cubista Pablo Picasso, rendeu perseguições e intimidações para o já então consagrado artista de vanguarda logo após a sua produção. Em plena Revolução Espanhola (que a história, oficial, insiste em chamar de “Guerra Civil Espanhola”), após os horrendos bombardeios perpetrados pelos caças alemães na cidade de Guernica, no País Basco, Picasso comprometeu-se em retratar, com toda a acidez e genialidade que lhe foram próprias, um dos episódios mais sangrentos entre os vários confrontos das linhas anarquistas, comunistas e social-democratas contra o fascismo e seus aliados. Foram centenas de mortos e uma cidade inteira deixada aos escombros, massacre que foi eternizado pela labuta de uma das maiores personalidades do Século XX.
Como um bom artista, Picasso não se eximiu de fazer oposição à barbárie fascista que crescia em toda a Europa. O enorme quadro de 3 metros de altura por 7 metros de comprimento causou frisson no meio artístico e político rapidamente, o que logo despertou a atenção das autoridades. Reza a lenda que o artista foi encurralado por censores fascistas e interrogado sobre a produção do painel, um “míssil” que abalou os salões da Exposição Internacional de Artes e Técnicas, realizada em Paris naquele período:
– Foi você quem fez isso? – repreenderam os fascistas.
– Não, foram vocês – teria respondido o pintor.
Picasso estava radicalmente contrário à pacificação por meio do fascismo. Uma pacificação que é, somente, eliminação de alguns corpos políticos que não têm serventia fora da democracia capitalista. São elimináveis, os comunistas, os ciganos, os homossexuais, os judeus pobres, os bebês raptados durante as várias décadas da ditadura de Francisco Franco. Para fazer frente a tal ameaça, toda a intelectualidade que se posicionou contra o fascismo fez diferença: fotógrafos, diretores de cinema e teatro, escritores, escultores… e também, claro, jornalistas.
O jornalismo é uma atividade que saiu das entranhas de uma revolução pela liberdade, a Revolução Francesa de 1789. Jamais pode ser contaminado pelo projeto antimoderno fascista, como observamos diversas vezes na história, em diversos episódios de ascensão autoritária, inclusive no Brasil. O capitão da reserva Jair Messias Bolsonaro já declarou inúmeras vezes que quer “pacificar” o Brasil tal qual Duque de Caxias, um notório general exterminador de povos originários, o “patrono” do Exército brasileiro há quase dois séculos. É, novamente, a pacificação pela eliminação, e o jornalismo comprometido com a liberdade, a existência das diferenças e discordâncias e a pluralidade dos modos de vida, que é exatamente o que o fascismo repudia, não deve se curvar perante o retrocesso civilizatório que o fascismo em nível mundial representa.
Os próximos anos serão, também, difíceis, ao que tudo indica, aos profissionais da imprensa. Não cabem, por ora, conjecturas mirabolantes, mas é certo que a imprensa brasileira, assim como outras instituições, caiu em violento descrédito. A revolução tecnológica capitalista que massacra empregos, esvazia redações e sobrecarrega profissionais é, também, uma radical mudança na forma de consumir notícias – muitas vezes, textos, vídeos e áudios falsos que tampouco podem ser caracterizados como jornalismo, na pior das hipóteses. Só é possível se desvencilhar disso reinventando o jornalismo, tornando-o necessário novamente, seja dentro das empresas jornalísticas tradicionais (o que é uma tarefa árdua, dadas as contradições desses ambientes, as linhas editoriais e as pressões publicitárias) ou com iniciativas de pequenos grupos, novos modelos de negócio jornalísticos que usam da internet como principal meio de circulação. Os novos modelos de financiamento já estão em experimentação e apontam para saídas interessantes e viáveis, por ora.
Há espaço para o bom jornalismo, o jornalismo da denúncia do autoritarismo. É exatamente isso que o futuro nos exigirá enquanto profissionais. Aos colegas de profissão que estão apreensivos, com razão, devemos respirar fundo e lembrar de que é necessário resistir à destruição das liberdades democráticas, que é o que nos sustenta enquanto profissionais e, em última medida, enquanto seres políticos. A nós cabe denunciar a paz que querem nos impor, olhar para o produto do nosso trabalho e, finalmente, dizer, como o pintor espanhol:
– Não, não fomos nós que fizemos isso. Foram vocês.
Por Willian Casagrande, jornalista, mestrando em Comunicação pela UEL e membro da diretoria do Sindijor Norte PR